sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Origens da fome

A fome não é um fenômeno recente. Esteve presente em várias épocas e por variadas razões. De guerras a calamidades ambientais. De todo modo, quando se buscam explicações para este problema tão antigo, duas razões disputam espaço: a explosão demográfica e as limitações climáticas de certas regiões. Quanto à primeira, Josué de Castro já havia demonstrado a contradição do argumento, lembrando que a fome já era um fenômeno de massa antes da explosão demográfica do pós-guerra. Mas, sobretudo, ao mostrar que a "muitas áreas de fome no mundo são áras de baixa densidade de população, como acontece na África e na América Latina" (Castro, p. 47).

Quanto ao segundo argumento, também ele, Josué de Castro, assim como Milton Santos, evidenciou que a fome esteve ligada muito mais ao modelo econômico e aos propósitos de uso da terra do que propriamente às condições climáticas das regiões. Ou seja, a fome no Brasil está relacionada, como fenômeno social, ao monopólio da monocultura e, como tal, a uma produção capitalista do espaço. Não se trata, aqui, de diabolizar o capital, mas de analisar as raízes históricas que tornam a fome um acontecimento repetido e cíclico. Mais ainda, trata-se de entender como tais práticas se naturalizam a ponto de invisibilizar a desigualdade social e econômica que proporcionam. Razão porque a cultura se torna um ingrediente de fundamental importância para o entendimento da fome no Brasil. E quando falamos em elemento cultural, nos referimos ao que Josué de Castro chamaria 'latifundismo agrário-feudal' e que Florestan Fernandes chamaria de 'mercado capistalista neocolonial'.

Sabemos que a fome não é um fenômeno exclusivo da modernidade. Por outro lado, é na gênese de uma economia de mercado (nos termos de Polanyi), que encontramos o fenômeno da fome com características bastante específicas: o acesso desigual à terra como recurso de produção e consumo por conta dos grandes latifúndios e a inserção do que nela se produz na ciranda do mercado auto-regulável. Claro que a fome moderna tem raízes ainda mais profundas e podemos encontrar rastros dela, para o Brasil e outros países da América Latina, no desenho de colonização e no modelo econômico que dele se originou. Para entendermos o surgimento da economia capitalista no Brasil e sua articulação com os posteriores impactos sociais e culturais - até chegarmos à questão da fome -, é preciso ir distante, na transição de um mercado colonial para uma proto-economia capitalista. É preciso ir aos clássicos - Eduardo Galeano, Celso Furtado, Florestan Fernandes, FHC (fazer o quê?) e Gilberto Freyre (mas com ressalvas).

Muitos esclarecimentos importantes advém de Florestan Fernandes - e assim se evitam alguns equívocos de meio de caminho, mas que podem fazer toda a diferença. Assim, por exemplo, mercado colonial não deve confundido com mercado capitalista neocolonial, ainda que em ambas encontremos o veio da exploração. Podemos até falar dos primórdios de uma economia capitalista, abordando questões viscerais para o entendimento das origens do mercado capitalista no Brasil - tais como latifúndio, estrutura patriarcal e exploração indiscriminada de recursos naturais para fins de crescimento econômico externo. Mas há diferenças importantes de encaminhamento - e mesmo de estilo de dominação - quando se compara um com o outro. Apesar de sabermos, com Sergio Bagú, que em tempos coloniais a metrópole havia criado a América Ibérica "para integrá-la ao ciclo do capitalismo nascente".

Certamente que há, nesta trilogia - escravidão, latifundio e patriarcado -, base para explicar muitos dos problemas de fome crônica nas diversas regiões do Brasil, já que, desde o início, defrontamo-nos com o atrofiamento de policulturas que poderiam garantir a alimentação interna da população brasileira em função da monocultura do açúcar. Monocultura demandante de extensas terras, exclusivista e, sobretudo, voltada para o enriquecimento de várias nações, beneficiadas pelas relações econômicas desiguais (diretas ou indiretas) com o país. Nomeadamente Portugal e Inglaterra. Para entender estes processos cumulativos de deterioração econômica, basta atentar para as análises de Eduardo Galeano e Celso Furtado - este último mencionando as oportunidades de ganho que Portugal ofereceu direta ou indiretamente aos holandeses (que depois concorreriam com o Brasil a partir do mercado de açucar estabelecido nas Antilhas) e aos ingleses (que construiriam muito da sua hegemonia bancária a partir do ouro brasileiro).

De todo modo, Florestan diferencia o mercado colonial do mercado capitalista florescente. Como dirá Florestan, “o padrão de desenvolvimento neocolonial é profundamente diverso do padrão colonial de desenvolvimento” (p. 266). A diferença principal é que o mercado capitalista exigirá uma institucionalização e inserção da economia interna no circuito mundial e na interação com o mercado hegemônico externo não existente no mercado colonial - em que o Brasil funcionava como apêndice da economia européia, sem haver nenhum mecanismo de regulação do fluxo de expropriação colonial (ver p. 265). É neste ponto que a porca torce o rabo.

Embora as nações hegemônicas intentassem obviamente, em relação ao Brasil, uma posição de domínio no seu fluxo de comércio internacional e de “apropriação da maior parcela possível do excedente econômico gerado” (Fernandes), o fato é que há uma diferença entre satelização colonial e satelização pelos mecanismos de mercado. Sem, é claro, esquecermos que esta última se alimentou da posição de colônia do Brasil no primeiro caso. Conquanto se geste, a partir daí, novos mecanismos de depedência – de que dificilmente o Brasil conseguiria se livrar no futuro –, a satelização pelos mecanismos de mercado acontece em outras bases e se alicerça na idéia (assimilada pelas estruturas dominantes e dominadas) de que o mercado externo exportava, principalmente, desenvolvimento econômico capitalista (p. 264). Esta idéia vigente, a circular e obnubilar os olhos da burguesia nascente brasileira, funcionou, ao que parece, como um tipo de "boa noite, cinderela".

A partir daí, há transformações em três aspectos básicos. Florestan fala em três enlaces a considerar, que permitem medir a influência do mercado capitalista moderno na dinamização da vida econômica. O primeiro enlace diz respeito à relação entre a economia interna e os mercados mundial e externo hegemônico, de que já falamos. O segundo é o enlace do mercado capitalista à vida da cidade e à população. Como veremos, trata-se aqui não só da constituição de um mercado consumidor, como também do aparecimento de novas funções laborais ligadas a uma economia urbano-comercial nascente – exercidas por escravos de aluguel, libertos e imigrantes pobres. O terceiro enlace é o do mercado capitalista com um sistema de produção escravista. Como nos mostra Florestan, esta relação não foi, como poderíamos pensar, um entrave, para o desenvolvimento capitalista no Brasil. Ao contrário, seja por razões econômicas, seja por preservar como base valores e parâmetros de estruturação social que se mostravam favoráveis à acumulação e concentração de riquezas , caras ao modelo capitalista, o sistema de produção escrevista serviu de alimento para o mercado capitalista neocolonial. Depois, no capitalismo de competição, este sistema haverá de mostrar entraves até ser substituído.

Não precisou haver mudanças iniciais na estrutura agrária e no sistema produtivo escravocrata para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A economia urbana-comercial nascente soube se articular e mesmo se alimentar da economia agrária – esta última funcionando dentro de seus antigos parâmetros até meados do século XIX. A utilização do trabalho escravo pelos engenhos e fazendas foi mesmo combustível para a transição neocolonial e a revolução urbana. Antes financiou esta última, de modo que a produção escravista possibilitará, em certa medida, a suplantação de seu próprio modelo (voltado antes para a exportação e enriquecimento externo) em proveito de uma burguesia brasileira florescente, interessada em financiar suas atividades. Como mostra Florestan, tem início uma “articulação da economia urbano-comercial com a economia agrária” (p. 266), mas esta economia é “dotada de dinamismos próprios de desenvolvimento”, “dependentes da produção escravista; no entanto, relativamente fortes sempre que a procura externa pudesse garantir a expansão deste setor” (p. 266).

Assim, vai sendo gestada paulatinamente uma relação de dependência entre o Brasil e as economias hegemônicas. A expoliação não-regulada cede lugar a um tipo mais sutil e naturalizado de dominação, em que deixa de interessar o controle absoluto sobre os fluxos comerciais e passa a se desejar a ascendência indireta sobre os encaminhamentos financeiros e de produção do país, de modo a ajustá-los “aos dinamismos das sociedades hegemônicas” (p. 273). Do mesmo modo, valores externos vão sendo injetados nas economias de periferia. Há aqui um jogo de proder mais sutil, porém mais profundo do que o colonial. Uma vez reproduzida a estrutura, o resultado econômico podia ser, mais ou menos esperado e controlado à distância. Não se trata de refrear o desenvolvimento do Brasil, mas de ajustá-lo a partir de “similaridades estruturais e funcionais” em relação à economia hegemônica e por ela transferidas (p. 276). A produção capitalista propriamente dita, por sua vez - que se inicia no setor urbano-comercial e depois se espraia pelo setor agrário -, é fruto do novo dinamismo insuflado na economia brasileira (através da produção, da manufatura e das operações financeiras). Daí forma-se, aos poucos, uma infra-estrutura diferente para o mercado capitalista moderno.

Este mercado, por sua vez, “engendra uma formação societária nova, fundada em relações competitivas” (p. 280). Deste modo, é importante considerar que a escravidão não termina pq assim querem os ingleses, mas pq o sistema escravista já não atende à infra-estrutura nascente para o mercado capitalista moderno, com um setor nascente urbano-comercial que irá demandar uma nova posição para o homem livre. Lembrando que este setor nascente não exclui, durante um bom tempo, a produção escravista, já que ela interessava. Esta relação entre o urbano e o agrário não se desfaz, embora o sistema de produção capitalista propriamente dito chegue primeiro no setor urbano-comercial e só depois chegue ao agrário.

As mudanças não param por aí - e é por isso que Florestan Fernandes enfatiza a necessidade de identificarmos o sentido sociológico implícito nas transformações por que passou o mercado, rumo à incorpração de relações de produção efetivamente capitalistas. Mudanças estas que se processam e que são importantes a partir desta nova infra-estrutura voltada para o mercado capitalista moderno. Uma delas é o surgimento da nossa de ‘povo’, que até então não havia muito claramente. Curioso que seja o mercado a despertar esta sensação, em virtude de termos antes apenas dois estamentos claros: os senhores e os escravos. Trata-se da “irrupção do povo na cena histórica” (p. 280).

As raízes deste povo, entretanto, estão calcadas em uma configuração estética bastante específica - a de uma infra-estrutura para o mercado capitalista moderno, cuja base identitária de sustentação foi o setor urbano-comercial. De todo modo, difícil imaginar que os fundamentos da sociedade brasileira - patriarcado, escravidão e latifúndio - tenham deixado de penetrar, subterraneamente, na dimensão urbana-comercial recém-criada.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Políticas da FAO

Um artigo que vale a pena ler se chama "FAO: mais livre comércio, mais fome". O link para acesso é:

http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1909/47