Notícias de hoje sobre alimentação e fome
Biocombustível foi a principal causa da crise alimentar, diz ONU
http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=40600
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
Geografia dos alimentos
Camara Cascudo disse, em seu tradicional livro "História da Alimentação Brasileira", que contamos com uma Hungersbewusstsein - ou seja, com uma consciência e um estudo da fome, em contraposição a uma Küchesbewusstsein, que seria uma espécie de consciência da culinária (2004, p. 342). Josué de Castro certamente discordaria desta impressão, já que, para ele, poucos estudos existiam que dessem conta de fenômeno tão visceral e homicida como a fome. De todo modo, o que Câmara Cascudo queria dizer era que faltava à culinária uma estética; ou seja, perspectivas de análise e de valorização da sua dimensão na vida dos homens.
Mas se a história da fome revela as relações de dominação que a condicionam, a história dos alimentos proporciona, por um caminho totalmente diverso, descobertas semelhantes. Com isso queremos dizer que uma história subterrânea de poder, de disputa de forças, subjaz ao cenário aparentemente plácido dos hábitos alimentares. Câmara Cascudo propõe uma geografia dos alimentos. Pois bem, de um modo menos evidente, esta geografia narra não só as preferências e gostos, mas também os fluxos de dominação nas relações de troca. E as cicatrizes do modelo colonial que orquestrava tais trocas na formação econômica de vários países. Exemplos não faltam: a produção e comercialização da banana nos trópicos para atender a um desejo florescente de consumo na Europa e nos Estados Unidos; as mudas de café vindas da Caiena e depois plantadas no Pará para atender a um mercado múltiplo e de uso variado. Café com leite para as elites que imitavam o hábito europeu elegante de misturar leite ao chá. Café sem açúcar como tônico para os escravos (Cascudo, p. 368).
Assim, pela cultura do café e pelos seus percursos - apenas para dar um exemplo - podemos identificar um sem-número de fenômenos: a coisificação do corpo do escravo, visto como motor de produção que precisava ser azeitado; a constituição de uma elite social no Brasil, com a respectiva perda de renda e vulnerabilidade alimentar diante de preços oscilantes; a consolidação de formas alternativas de exploração econômica em substituição à escravidão, com imigrantes entregando parte de sua produção em troca do direito de permanecer e produzir na terra (Galeano, 2007, p. 128).
O café, assim como outras monoculturas exemplarmente festejadas pelo crescimento econômico a elas atrelado, nos conta a história de uma produção capitalista do espaço. Estamos falando, portanto, da divisão desigual de recursos e de uma privatização do espaço, cuja cartografia obedece aos interesses hegemônicos. Por esta razão, ele entrelaça sua presença com o fenômeno da fome em várias partes do mundo. Em El Salvador, por exemplo, implicou a importação de alimentos básicos, como feijão e milho, que poderiam ser produzidos localmente. Nos países da América Central, o café "desalentou, em sua expansão sem freios, a agricultura de alimentos destinados ao mercado interno", com estas economias sofrendo de uma "crônica excassez de arroz, feijões, trigo e carne" (Galeano, 2007, p. 140).
A dominação simbólica tem raízes profundas e se instala nos gestos mais básicos do homem - entre eles, o ato de comer. Assim, o que se come, a condição de acesso ou de escassez de certos alimentos, o sentido cultural a eles atribuído, o reforço identitário que o gosto promove a partir da seleção dos alimentos - tudo isto evidencia o consumo como marcador social, mas, sobretudo expõe históricas relações de força.
Mas se a história da fome revela as relações de dominação que a condicionam, a história dos alimentos proporciona, por um caminho totalmente diverso, descobertas semelhantes. Com isso queremos dizer que uma história subterrânea de poder, de disputa de forças, subjaz ao cenário aparentemente plácido dos hábitos alimentares. Câmara Cascudo propõe uma geografia dos alimentos. Pois bem, de um modo menos evidente, esta geografia narra não só as preferências e gostos, mas também os fluxos de dominação nas relações de troca. E as cicatrizes do modelo colonial que orquestrava tais trocas na formação econômica de vários países. Exemplos não faltam: a produção e comercialização da banana nos trópicos para atender a um desejo florescente de consumo na Europa e nos Estados Unidos; as mudas de café vindas da Caiena e depois plantadas no Pará para atender a um mercado múltiplo e de uso variado. Café com leite para as elites que imitavam o hábito europeu elegante de misturar leite ao chá. Café sem açúcar como tônico para os escravos (Cascudo, p. 368).
Assim, pela cultura do café e pelos seus percursos - apenas para dar um exemplo - podemos identificar um sem-número de fenômenos: a coisificação do corpo do escravo, visto como motor de produção que precisava ser azeitado; a constituição de uma elite social no Brasil, com a respectiva perda de renda e vulnerabilidade alimentar diante de preços oscilantes; a consolidação de formas alternativas de exploração econômica em substituição à escravidão, com imigrantes entregando parte de sua produção em troca do direito de permanecer e produzir na terra (Galeano, 2007, p. 128).
O café, assim como outras monoculturas exemplarmente festejadas pelo crescimento econômico a elas atrelado, nos conta a história de uma produção capitalista do espaço. Estamos falando, portanto, da divisão desigual de recursos e de uma privatização do espaço, cuja cartografia obedece aos interesses hegemônicos. Por esta razão, ele entrelaça sua presença com o fenômeno da fome em várias partes do mundo. Em El Salvador, por exemplo, implicou a importação de alimentos básicos, como feijão e milho, que poderiam ser produzidos localmente. Nos países da América Central, o café "desalentou, em sua expansão sem freios, a agricultura de alimentos destinados ao mercado interno", com estas economias sofrendo de uma "crônica excassez de arroz, feijões, trigo e carne" (Galeano, 2007, p. 140).
A dominação simbólica tem raízes profundas e se instala nos gestos mais básicos do homem - entre eles, o ato de comer. Assim, o que se come, a condição de acesso ou de escassez de certos alimentos, o sentido cultural a eles atribuído, o reforço identitário que o gosto promove a partir da seleção dos alimentos - tudo isto evidencia o consumo como marcador social, mas, sobretudo expõe históricas relações de força.
segunda-feira, 8 de setembro de 2008
O latifúndio e a fome
Não estou falando nenhuma novidade. Grandes intelectuais das ciências sociais já o disseram de inúmeras formas. Há uma relação intrínseca entre as grandes propriedades e a situação de penúria alimentar por que passaram muitas populações da América Latina e da América Central. Por grandes propriedades entendemos, aqui, as que surgiram como casas-grandes (na conceituação de Gilberto Freyre) e as que vieram depois - quando a escravidão já tinha sido abolida, mas dela restava um nó górdio cujas conseqüências se fariam sentir nos séculos seguintes.
Atualmente, a mídia nos faz crer - com sua ênfase no efeito econômico dos empreendimentos por ela relatados - que o agronegócio constitui um importante alicerce para o desenvolvimento do País. Toda a infraestrutura, inclusive política, a ele relacionada parece passar pelo filtro midiático como condição natural para o crescimento econômico. Em contrapartida, todas as medidas que contenham o apetite das elites fundiárias - e, com elas, o avanço do modelo agroexportador - tendem a ser assimiladas e divulgadas pelo aparato midiático sob a perspectiva do espetáculo. São usualmente enquadradas como atentado à ordem pública. No centro da discussão, a palavra-chave: propriedade. Mais precisamente, a grande propriedade.
Na contramão do fluxo e da natureza de informações destinadas à Opinião Pública, uma análise mais detalhada dos processos de produção e consumo que nortearam a América Latina no geral - e o Brasil, mais especificamente -, nos permite perceber que onde se intalou a grande propriedade com vistas aos apetites de consumo do mercado externo, também a fome e a instabilidade alimentar estiveram presentes como pano de fundo.
Não foram só os países da América Latina. Também as economias centro-americanas foram dilapidadas frente aos interesses hegemônicos - no caso específico da América Central estamos nos referindo aos países da América Central. Curiosamente, a desnutrição de populações inteiras esteve vinculada, vejam bem, ao consumo de alimentos em outros países. Assim, a banana produzida em países como Honduras, Guatemala, Equador, Colômbia, Costa Rica e Panamá destinava-se às expectativas de consumo da Europa e dos Estados Unidos. E não se pouparam esforços para rearticular o espaço das cidades - com portos e rodovias - para nelas encrustar depois o aparato de produção que garantiria o consumo norte-americano e europeu.
Do mesmo modo, o café produzido na América Central, na Colômbia e no Brasil tinham destino semelhante. Assim, culturas orientadas predominantemente ao consumo além-mar - como as do açúcar, do chocolate, do café e da banana, todas calcadas no modelo latifundiário - desalojaram em várias partes do continente americano a agricultura de alimentos, forçando uma relação de curiosa e desnecessária dependência em relação às mesmas economias a que serviam. Desta forma, como nos mostra Eduardo Galeano, o cacau brasileiro - e também aquele que vem do Equador e da África - atendeu historicamente aos apetites que a Europa tinha em relação ao chocolate. O mesmo que o Brasil depois vai importar, a preços muito maiores, de países europeus:
"Os grandes consumidores de cacau (...) estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produziam, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados profuram árvores para sob elas dormir e babanas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça" (Galeano, p. 124-125)
Mas o chocolate é apenas um entre muitos casos conhecidos. Como já nos advertira Celso Furtado, a concentração de renda - que responde pela pobreza e, por conseqüência, pela insegurança alimentar - tem relação estreita com a estrutura fundiária brasileira (2004, p. 3). A situação se agrava, sem que identifiquem as raízes históricas do problema, à medida que, dentro de uma economia capitalista de mercado, outras formas de monetarizar gêneros alimentícios se disseminam. Comida é ativo financeiro, sujeito às oscilações das cotações de Bolsa - ou seja, aos apetites dos grandes grupos financeiros internacionais.
Como vêm observando o geógrafo brasileiro Ariovaldo Umbelino e o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, as estruturas produtivas constituem o novo alvo de interesse do capital financeiro. Não mais como risco intangível, mas como uma espécie de especulação programada. É de se imaginar que esta crescente financeirização das estruturas produtivas agucem a concentração de capital nos países investidos. E que inaugurem, paralelamente, novas formas de planejamento das estratégias de marketing e propaganda calcadas em um direcionamento ainda mais personalizado do consumo. Explicando melhor: as tendências no mercado de alimentos - e as orientações para as macroestratégias de comunicação - já não virão da própria cadeia de alimentos, mas do mercado financeiro, que se responsabiliza cada vez mais pelo destino e o valor das comodities agrícolas. Como a indústria da moda, o mercado de alimentos poderá segmentar-se segundo tendências fomentadas fora dele.
O valor simbólico dos alimentos - seja nas culturas em que se originam, seja naquelas a que se destinam - permanece como suporte narrativo imprescindível para a compreensão das forças sócio-econômicas em jogo. Através da dinâmica dos alimentos - daquilo que se consome e daquilo que está ausente; daquilo que se produz e daquilo que se vende - podemos entender a disputa de forças dentro de uma dada realidade social. O mercado de alimentos é também um tecido revelador a partir do qual entendemos as vicissitudes de uma formação econômica defeituosa. Isto porque produção, distribuição e consumo de alimentos foram sempre tratados como fenômenos exclusivamente econômicos (Castro,2004, p. 13), o que confirma outra das constatações bastante conhecidas de Josué de Castro - a de que o subdesenvolvimento não é uma etapa em que se encontram alguns países, mas produto do desenvolvimento alcançado por outros. Portanto, o consumo de alimentos é terreno em que vislumbramos muitas pegadas reveladoras: traços de dominação cultural e econômica, rastros de resistência,misturas e reinvenções de sentido. O que comemos e o que não comemos conta uma história.
A comida sempre foi reveladora de um modo de vida e de uma posição ocupada na ordem econômica. Do mesmo modo, a ausência de soberania alimentar de um país comunica suas prioridades políticas e a natureza desigual e dependente de suas relações econômicas. Neste âmbito, quatro fatores revelarão a fome como tendência ou como fenômeno social manifesto: 1. o que o país produz e vende como alimento, 2. a estrutura fundiária que sustenta esta produção (e a quem ela enriquece), 3. o que importa (e em que condições) e 4. o grau de prioridade que atribui à agricultura de consumo interno. A correlação entre estes fatores influencia diretamente as condições materiais e simbólicas da vida social. E, como tal, os níveis de nutrição e desnutrição de grupos, bem como os hábitos alimentares - quais alimentos são possíveis e marcam as identidades cultural e de classe, quais estarão ausentes por uma política agrária que privilegia a terra para outros cultivos, quais estarão acessíveis apenas para certas camadas da população em função das oscilações dos preços e da sua disponibilidade restrita.
A fome acontece por variadas razões - de calamidades ambientais e guerras a opções econômicas internacionais que restringem o consumo de comida em várias partes do mundo. O que verificamos é que muitas das situações de fome são fomentadas por relações históricas de expoliação e por relações econômicas abusivas que as perpetuam (como foi o caso do Brasil com o açúcar que destinou aos cofres de Portugal ou ainda, mais recentemente, do café e da banana na Colômbia). A situação se agudiza nestes países com relações históricas de dominação e de predomínio de uma cultura patriarcal e de latifúndio à medida que o cenário se modifica ao sabor dos apetites de um capital financeiro sem nacionalidade definida. Os localismos globais e os globalismos locais fazem parecer comuns interesses que não o são e obnubilam a visão dos fluxos e atores econômicos dominantes - antes mais claros; estabelecem uma escala ilusória universal a partir da qual as economias se medem umas às outras.
Os interesses econômicos nestas regiões onde a fome é um dado constante não se alteram com o quadro. A guerra civil e a fome desarticuladora na República do Congo, por exemplo, não reduzem os rendimentos das grandes companhias controladoras da mineração de coltan - tão necessário para o desenvolvimento e a manutenção de toda a tecnologia sob a qual repousa o Ocidente. Do mesmo modo, a fome endêmica de várias regiões do Nordeste do Brasil não altera o panorama de ganhos que a fruticultura de exportação obtém, usando terra e água que poderiam estar sendo destinados à agricultura de alimentos para consumo local.
Mas a crise alimentar atual nos mostra que o oposto não é verdade. Ou seja, as prioridades internacionais, o modelo de desenvolvimento acionado pelo Banco Mundial e propagado pelas economias, o 'loteamento' das terras agricultáveis e dos recursos do mundo conforme interesses privados, tudo isso afeta consideravelmente as condições mínimas de nutrição de populações inteiras. A opção política por uma agricultura de exportação têm pesos diferentes para os países - especialmente quando uma boa parte da renda das pessoas fica por conta dos alimentos. O milho, por exemplo, representa quase 50% dos gastos de uma família pobre no México (dados do MST). O arroz, podendo até duplicar de valor no período curto de uma semana, como aconteceu no Haiti em início de 2008 (Chossudovsky, 2008), compromete de modo inquestionável as condições de uma população local que gasta até 80% de seus rendimentos com comida. É interessante observar, conforme nos alerta Chossudovsky, que "o comércio especulativo sobre o trigo, o arroz ou o milho pode fazer-se na ausência de transações reais de bens. As instituições que especulam no mercado dos cereais não têm que estar obrigatoriamente envolvidas na venda ou na entrega dos cereais" (p.3).
Esta especulação deixa, aos poucos, de ser imaterial. Recai sobre as várias etapas da cadeia alimentar e se estende, sorrateira e firmemente, em direção às estruturas produtivas e à terra. Comida vira moeda. E quem ganha com ela não parece minimamente interessado em reduzir seus ganhos. Ainda que, em várias partes do mundo, o que sobre das rendas das pessoas seja agora insuficiente para cobrir os gastos mínimos com comida.
Atualmente, a mídia nos faz crer - com sua ênfase no efeito econômico dos empreendimentos por ela relatados - que o agronegócio constitui um importante alicerce para o desenvolvimento do País. Toda a infraestrutura, inclusive política, a ele relacionada parece passar pelo filtro midiático como condição natural para o crescimento econômico. Em contrapartida, todas as medidas que contenham o apetite das elites fundiárias - e, com elas, o avanço do modelo agroexportador - tendem a ser assimiladas e divulgadas pelo aparato midiático sob a perspectiva do espetáculo. São usualmente enquadradas como atentado à ordem pública. No centro da discussão, a palavra-chave: propriedade. Mais precisamente, a grande propriedade.
Na contramão do fluxo e da natureza de informações destinadas à Opinião Pública, uma análise mais detalhada dos processos de produção e consumo que nortearam a América Latina no geral - e o Brasil, mais especificamente -, nos permite perceber que onde se intalou a grande propriedade com vistas aos apetites de consumo do mercado externo, também a fome e a instabilidade alimentar estiveram presentes como pano de fundo.
Não foram só os países da América Latina. Também as economias centro-americanas foram dilapidadas frente aos interesses hegemônicos - no caso específico da América Central estamos nos referindo aos países da América Central. Curiosamente, a desnutrição de populações inteiras esteve vinculada, vejam bem, ao consumo de alimentos em outros países. Assim, a banana produzida em países como Honduras, Guatemala, Equador, Colômbia, Costa Rica e Panamá destinava-se às expectativas de consumo da Europa e dos Estados Unidos. E não se pouparam esforços para rearticular o espaço das cidades - com portos e rodovias - para nelas encrustar depois o aparato de produção que garantiria o consumo norte-americano e europeu.
Do mesmo modo, o café produzido na América Central, na Colômbia e no Brasil tinham destino semelhante. Assim, culturas orientadas predominantemente ao consumo além-mar - como as do açúcar, do chocolate, do café e da banana, todas calcadas no modelo latifundiário - desalojaram em várias partes do continente americano a agricultura de alimentos, forçando uma relação de curiosa e desnecessária dependência em relação às mesmas economias a que serviam. Desta forma, como nos mostra Eduardo Galeano, o cacau brasileiro - e também aquele que vem do Equador e da África - atendeu historicamente aos apetites que a Europa tinha em relação ao chocolate. O mesmo que o Brasil depois vai importar, a preços muito maiores, de países europeus:
"Os grandes consumidores de cacau (...) estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produziam, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados profuram árvores para sob elas dormir e babanas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça" (Galeano, p. 124-125)
Mas o chocolate é apenas um entre muitos casos conhecidos. Como já nos advertira Celso Furtado, a concentração de renda - que responde pela pobreza e, por conseqüência, pela insegurança alimentar - tem relação estreita com a estrutura fundiária brasileira (2004, p. 3). A situação se agrava, sem que identifiquem as raízes históricas do problema, à medida que, dentro de uma economia capitalista de mercado, outras formas de monetarizar gêneros alimentícios se disseminam. Comida é ativo financeiro, sujeito às oscilações das cotações de Bolsa - ou seja, aos apetites dos grandes grupos financeiros internacionais.
Como vêm observando o geógrafo brasileiro Ariovaldo Umbelino e o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, as estruturas produtivas constituem o novo alvo de interesse do capital financeiro. Não mais como risco intangível, mas como uma espécie de especulação programada. É de se imaginar que esta crescente financeirização das estruturas produtivas agucem a concentração de capital nos países investidos. E que inaugurem, paralelamente, novas formas de planejamento das estratégias de marketing e propaganda calcadas em um direcionamento ainda mais personalizado do consumo. Explicando melhor: as tendências no mercado de alimentos - e as orientações para as macroestratégias de comunicação - já não virão da própria cadeia de alimentos, mas do mercado financeiro, que se responsabiliza cada vez mais pelo destino e o valor das comodities agrícolas. Como a indústria da moda, o mercado de alimentos poderá segmentar-se segundo tendências fomentadas fora dele.
O valor simbólico dos alimentos - seja nas culturas em que se originam, seja naquelas a que se destinam - permanece como suporte narrativo imprescindível para a compreensão das forças sócio-econômicas em jogo. Através da dinâmica dos alimentos - daquilo que se consome e daquilo que está ausente; daquilo que se produz e daquilo que se vende - podemos entender a disputa de forças dentro de uma dada realidade social. O mercado de alimentos é também um tecido revelador a partir do qual entendemos as vicissitudes de uma formação econômica defeituosa. Isto porque produção, distribuição e consumo de alimentos foram sempre tratados como fenômenos exclusivamente econômicos (Castro,2004, p. 13), o que confirma outra das constatações bastante conhecidas de Josué de Castro - a de que o subdesenvolvimento não é uma etapa em que se encontram alguns países, mas produto do desenvolvimento alcançado por outros. Portanto, o consumo de alimentos é terreno em que vislumbramos muitas pegadas reveladoras: traços de dominação cultural e econômica, rastros de resistência,misturas e reinvenções de sentido. O que comemos e o que não comemos conta uma história.
A comida sempre foi reveladora de um modo de vida e de uma posição ocupada na ordem econômica. Do mesmo modo, a ausência de soberania alimentar de um país comunica suas prioridades políticas e a natureza desigual e dependente de suas relações econômicas. Neste âmbito, quatro fatores revelarão a fome como tendência ou como fenômeno social manifesto: 1. o que o país produz e vende como alimento, 2. a estrutura fundiária que sustenta esta produção (e a quem ela enriquece), 3. o que importa (e em que condições) e 4. o grau de prioridade que atribui à agricultura de consumo interno. A correlação entre estes fatores influencia diretamente as condições materiais e simbólicas da vida social. E, como tal, os níveis de nutrição e desnutrição de grupos, bem como os hábitos alimentares - quais alimentos são possíveis e marcam as identidades cultural e de classe, quais estarão ausentes por uma política agrária que privilegia a terra para outros cultivos, quais estarão acessíveis apenas para certas camadas da população em função das oscilações dos preços e da sua disponibilidade restrita.
A fome acontece por variadas razões - de calamidades ambientais e guerras a opções econômicas internacionais que restringem o consumo de comida em várias partes do mundo. O que verificamos é que muitas das situações de fome são fomentadas por relações históricas de expoliação e por relações econômicas abusivas que as perpetuam (como foi o caso do Brasil com o açúcar que destinou aos cofres de Portugal ou ainda, mais recentemente, do café e da banana na Colômbia). A situação se agudiza nestes países com relações históricas de dominação e de predomínio de uma cultura patriarcal e de latifúndio à medida que o cenário se modifica ao sabor dos apetites de um capital financeiro sem nacionalidade definida. Os localismos globais e os globalismos locais fazem parecer comuns interesses que não o são e obnubilam a visão dos fluxos e atores econômicos dominantes - antes mais claros; estabelecem uma escala ilusória universal a partir da qual as economias se medem umas às outras.
Os interesses econômicos nestas regiões onde a fome é um dado constante não se alteram com o quadro. A guerra civil e a fome desarticuladora na República do Congo, por exemplo, não reduzem os rendimentos das grandes companhias controladoras da mineração de coltan - tão necessário para o desenvolvimento e a manutenção de toda a tecnologia sob a qual repousa o Ocidente. Do mesmo modo, a fome endêmica de várias regiões do Nordeste do Brasil não altera o panorama de ganhos que a fruticultura de exportação obtém, usando terra e água que poderiam estar sendo destinados à agricultura de alimentos para consumo local.
Mas a crise alimentar atual nos mostra que o oposto não é verdade. Ou seja, as prioridades internacionais, o modelo de desenvolvimento acionado pelo Banco Mundial e propagado pelas economias, o 'loteamento' das terras agricultáveis e dos recursos do mundo conforme interesses privados, tudo isso afeta consideravelmente as condições mínimas de nutrição de populações inteiras. A opção política por uma agricultura de exportação têm pesos diferentes para os países - especialmente quando uma boa parte da renda das pessoas fica por conta dos alimentos. O milho, por exemplo, representa quase 50% dos gastos de uma família pobre no México (dados do MST). O arroz, podendo até duplicar de valor no período curto de uma semana, como aconteceu no Haiti em início de 2008 (Chossudovsky, 2008), compromete de modo inquestionável as condições de uma população local que gasta até 80% de seus rendimentos com comida. É interessante observar, conforme nos alerta Chossudovsky, que "o comércio especulativo sobre o trigo, o arroz ou o milho pode fazer-se na ausência de transações reais de bens. As instituições que especulam no mercado dos cereais não têm que estar obrigatoriamente envolvidas na venda ou na entrega dos cereais" (p.3).
Esta especulação deixa, aos poucos, de ser imaterial. Recai sobre as várias etapas da cadeia alimentar e se estende, sorrateira e firmemente, em direção às estruturas produtivas e à terra. Comida vira moeda. E quem ganha com ela não parece minimamente interessado em reduzir seus ganhos. Ainda que, em várias partes do mundo, o que sobre das rendas das pessoas seja agora insuficiente para cobrir os gastos mínimos com comida.
sexta-feira, 22 de agosto de 2008
Origens da fome
A fome não é um fenômeno recente. Esteve presente em várias épocas e por variadas razões. De guerras a calamidades ambientais. De todo modo, quando se buscam explicações para este problema tão antigo, duas razões disputam espaço: a explosão demográfica e as limitações climáticas de certas regiões. Quanto à primeira, Josué de Castro já havia demonstrado a contradição do argumento, lembrando que a fome já era um fenômeno de massa antes da explosão demográfica do pós-guerra. Mas, sobretudo, ao mostrar que a "muitas áreas de fome no mundo são áras de baixa densidade de população, como acontece na África e na América Latina" (Castro, p. 47).
Quanto ao segundo argumento, também ele, Josué de Castro, assim como Milton Santos, evidenciou que a fome esteve ligada muito mais ao modelo econômico e aos propósitos de uso da terra do que propriamente às condições climáticas das regiões. Ou seja, a fome no Brasil está relacionada, como fenômeno social, ao monopólio da monocultura e, como tal, a uma produção capitalista do espaço. Não se trata, aqui, de diabolizar o capital, mas de analisar as raízes históricas que tornam a fome um acontecimento repetido e cíclico. Mais ainda, trata-se de entender como tais práticas se naturalizam a ponto de invisibilizar a desigualdade social e econômica que proporcionam. Razão porque a cultura se torna um ingrediente de fundamental importância para o entendimento da fome no Brasil. E quando falamos em elemento cultural, nos referimos ao que Josué de Castro chamaria 'latifundismo agrário-feudal' e que Florestan Fernandes chamaria de 'mercado capistalista neocolonial'.
Sabemos que a fome não é um fenômeno exclusivo da modernidade. Por outro lado, é na gênese de uma economia de mercado (nos termos de Polanyi), que encontramos o fenômeno da fome com características bastante específicas: o acesso desigual à terra como recurso de produção e consumo por conta dos grandes latifúndios e a inserção do que nela se produz na ciranda do mercado auto-regulável. Claro que a fome moderna tem raízes ainda mais profundas e podemos encontrar rastros dela, para o Brasil e outros países da América Latina, no desenho de colonização e no modelo econômico que dele se originou. Para entendermos o surgimento da economia capitalista no Brasil e sua articulação com os posteriores impactos sociais e culturais - até chegarmos à questão da fome -, é preciso ir distante, na transição de um mercado colonial para uma proto-economia capitalista. É preciso ir aos clássicos - Eduardo Galeano, Celso Furtado, Florestan Fernandes, FHC (fazer o quê?) e Gilberto Freyre (mas com ressalvas).
Muitos esclarecimentos importantes advém de Florestan Fernandes - e assim se evitam alguns equívocos de meio de caminho, mas que podem fazer toda a diferença. Assim, por exemplo, mercado colonial não deve confundido com mercado capitalista neocolonial, ainda que em ambas encontremos o veio da exploração. Podemos até falar dos primórdios de uma economia capitalista, abordando questões viscerais para o entendimento das origens do mercado capitalista no Brasil - tais como latifúndio, estrutura patriarcal e exploração indiscriminada de recursos naturais para fins de crescimento econômico externo. Mas há diferenças importantes de encaminhamento - e mesmo de estilo de dominação - quando se compara um com o outro. Apesar de sabermos, com Sergio Bagú, que em tempos coloniais a metrópole havia criado a América Ibérica "para integrá-la ao ciclo do capitalismo nascente".
Certamente que há, nesta trilogia - escravidão, latifundio e patriarcado -, base para explicar muitos dos problemas de fome crônica nas diversas regiões do Brasil, já que, desde o início, defrontamo-nos com o atrofiamento de policulturas que poderiam garantir a alimentação interna da população brasileira em função da monocultura do açúcar. Monocultura demandante de extensas terras, exclusivista e, sobretudo, voltada para o enriquecimento de várias nações, beneficiadas pelas relações econômicas desiguais (diretas ou indiretas) com o país. Nomeadamente Portugal e Inglaterra. Para entender estes processos cumulativos de deterioração econômica, basta atentar para as análises de Eduardo Galeano e Celso Furtado - este último mencionando as oportunidades de ganho que Portugal ofereceu direta ou indiretamente aos holandeses (que depois concorreriam com o Brasil a partir do mercado de açucar estabelecido nas Antilhas) e aos ingleses (que construiriam muito da sua hegemonia bancária a partir do ouro brasileiro).
De todo modo, Florestan diferencia o mercado colonial do mercado capitalista florescente. Como dirá Florestan, “o padrão de desenvolvimento neocolonial é profundamente diverso do padrão colonial de desenvolvimento” (p. 266). A diferença principal é que o mercado capitalista exigirá uma institucionalização e inserção da economia interna no circuito mundial e na interação com o mercado hegemônico externo não existente no mercado colonial - em que o Brasil funcionava como apêndice da economia européia, sem haver nenhum mecanismo de regulação do fluxo de expropriação colonial (ver p. 265). É neste ponto que a porca torce o rabo.
Embora as nações hegemônicas intentassem obviamente, em relação ao Brasil, uma posição de domínio no seu fluxo de comércio internacional e de “apropriação da maior parcela possível do excedente econômico gerado” (Fernandes), o fato é que há uma diferença entre satelização colonial e satelização pelos mecanismos de mercado. Sem, é claro, esquecermos que esta última se alimentou da posição de colônia do Brasil no primeiro caso. Conquanto se geste, a partir daí, novos mecanismos de depedência – de que dificilmente o Brasil conseguiria se livrar no futuro –, a satelização pelos mecanismos de mercado acontece em outras bases e se alicerça na idéia (assimilada pelas estruturas dominantes e dominadas) de que o mercado externo exportava, principalmente, desenvolvimento econômico capitalista (p. 264). Esta idéia vigente, a circular e obnubilar os olhos da burguesia nascente brasileira, funcionou, ao que parece, como um tipo de "boa noite, cinderela".
A partir daí, há transformações em três aspectos básicos. Florestan fala em três enlaces a considerar, que permitem medir a influência do mercado capitalista moderno na dinamização da vida econômica. O primeiro enlace diz respeito à relação entre a economia interna e os mercados mundial e externo hegemônico, de que já falamos. O segundo é o enlace do mercado capitalista à vida da cidade e à população. Como veremos, trata-se aqui não só da constituição de um mercado consumidor, como também do aparecimento de novas funções laborais ligadas a uma economia urbano-comercial nascente – exercidas por escravos de aluguel, libertos e imigrantes pobres. O terceiro enlace é o do mercado capitalista com um sistema de produção escravista. Como nos mostra Florestan, esta relação não foi, como poderíamos pensar, um entrave, para o desenvolvimento capitalista no Brasil. Ao contrário, seja por razões econômicas, seja por preservar como base valores e parâmetros de estruturação social que se mostravam favoráveis à acumulação e concentração de riquezas , caras ao modelo capitalista, o sistema de produção escrevista serviu de alimento para o mercado capitalista neocolonial. Depois, no capitalismo de competição, este sistema haverá de mostrar entraves até ser substituído.
Não precisou haver mudanças iniciais na estrutura agrária e no sistema produtivo escravocrata para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A economia urbana-comercial nascente soube se articular e mesmo se alimentar da economia agrária – esta última funcionando dentro de seus antigos parâmetros até meados do século XIX. A utilização do trabalho escravo pelos engenhos e fazendas foi mesmo combustível para a transição neocolonial e a revolução urbana. Antes financiou esta última, de modo que a produção escravista possibilitará, em certa medida, a suplantação de seu próprio modelo (voltado antes para a exportação e enriquecimento externo) em proveito de uma burguesia brasileira florescente, interessada em financiar suas atividades. Como mostra Florestan, tem início uma “articulação da economia urbano-comercial com a economia agrária” (p. 266), mas esta economia é “dotada de dinamismos próprios de desenvolvimento”, “dependentes da produção escravista; no entanto, relativamente fortes sempre que a procura externa pudesse garantir a expansão deste setor” (p. 266).
Assim, vai sendo gestada paulatinamente uma relação de dependência entre o Brasil e as economias hegemônicas. A expoliação não-regulada cede lugar a um tipo mais sutil e naturalizado de dominação, em que deixa de interessar o controle absoluto sobre os fluxos comerciais e passa a se desejar a ascendência indireta sobre os encaminhamentos financeiros e de produção do país, de modo a ajustá-los “aos dinamismos das sociedades hegemônicas” (p. 273). Do mesmo modo, valores externos vão sendo injetados nas economias de periferia. Há aqui um jogo de proder mais sutil, porém mais profundo do que o colonial. Uma vez reproduzida a estrutura, o resultado econômico podia ser, mais ou menos esperado e controlado à distância. Não se trata de refrear o desenvolvimento do Brasil, mas de ajustá-lo a partir de “similaridades estruturais e funcionais” em relação à economia hegemônica e por ela transferidas (p. 276). A produção capitalista propriamente dita, por sua vez - que se inicia no setor urbano-comercial e depois se espraia pelo setor agrário -, é fruto do novo dinamismo insuflado na economia brasileira (através da produção, da manufatura e das operações financeiras). Daí forma-se, aos poucos, uma infra-estrutura diferente para o mercado capitalista moderno.
Este mercado, por sua vez, “engendra uma formação societária nova, fundada em relações competitivas” (p. 280). Deste modo, é importante considerar que a escravidão não termina pq assim querem os ingleses, mas pq o sistema escravista já não atende à infra-estrutura nascente para o mercado capitalista moderno, com um setor nascente urbano-comercial que irá demandar uma nova posição para o homem livre. Lembrando que este setor nascente não exclui, durante um bom tempo, a produção escravista, já que ela interessava. Esta relação entre o urbano e o agrário não se desfaz, embora o sistema de produção capitalista propriamente dito chegue primeiro no setor urbano-comercial e só depois chegue ao agrário.
As mudanças não param por aí - e é por isso que Florestan Fernandes enfatiza a necessidade de identificarmos o sentido sociológico implícito nas transformações por que passou o mercado, rumo à incorpração de relações de produção efetivamente capitalistas. Mudanças estas que se processam e que são importantes a partir desta nova infra-estrutura voltada para o mercado capitalista moderno. Uma delas é o surgimento da nossa de ‘povo’, que até então não havia muito claramente. Curioso que seja o mercado a despertar esta sensação, em virtude de termos antes apenas dois estamentos claros: os senhores e os escravos. Trata-se da “irrupção do povo na cena histórica” (p. 280).
As raízes deste povo, entretanto, estão calcadas em uma configuração estética bastante específica - a de uma infra-estrutura para o mercado capitalista moderno, cuja base identitária de sustentação foi o setor urbano-comercial. De todo modo, difícil imaginar que os fundamentos da sociedade brasileira - patriarcado, escravidão e latifúndio - tenham deixado de penetrar, subterraneamente, na dimensão urbana-comercial recém-criada.
Quanto ao segundo argumento, também ele, Josué de Castro, assim como Milton Santos, evidenciou que a fome esteve ligada muito mais ao modelo econômico e aos propósitos de uso da terra do que propriamente às condições climáticas das regiões. Ou seja, a fome no Brasil está relacionada, como fenômeno social, ao monopólio da monocultura e, como tal, a uma produção capitalista do espaço. Não se trata, aqui, de diabolizar o capital, mas de analisar as raízes históricas que tornam a fome um acontecimento repetido e cíclico. Mais ainda, trata-se de entender como tais práticas se naturalizam a ponto de invisibilizar a desigualdade social e econômica que proporcionam. Razão porque a cultura se torna um ingrediente de fundamental importância para o entendimento da fome no Brasil. E quando falamos em elemento cultural, nos referimos ao que Josué de Castro chamaria 'latifundismo agrário-feudal' e que Florestan Fernandes chamaria de 'mercado capistalista neocolonial'.
Sabemos que a fome não é um fenômeno exclusivo da modernidade. Por outro lado, é na gênese de uma economia de mercado (nos termos de Polanyi), que encontramos o fenômeno da fome com características bastante específicas: o acesso desigual à terra como recurso de produção e consumo por conta dos grandes latifúndios e a inserção do que nela se produz na ciranda do mercado auto-regulável. Claro que a fome moderna tem raízes ainda mais profundas e podemos encontrar rastros dela, para o Brasil e outros países da América Latina, no desenho de colonização e no modelo econômico que dele se originou. Para entendermos o surgimento da economia capitalista no Brasil e sua articulação com os posteriores impactos sociais e culturais - até chegarmos à questão da fome -, é preciso ir distante, na transição de um mercado colonial para uma proto-economia capitalista. É preciso ir aos clássicos - Eduardo Galeano, Celso Furtado, Florestan Fernandes, FHC (fazer o quê?) e Gilberto Freyre (mas com ressalvas).
Muitos esclarecimentos importantes advém de Florestan Fernandes - e assim se evitam alguns equívocos de meio de caminho, mas que podem fazer toda a diferença. Assim, por exemplo, mercado colonial não deve confundido com mercado capitalista neocolonial, ainda que em ambas encontremos o veio da exploração. Podemos até falar dos primórdios de uma economia capitalista, abordando questões viscerais para o entendimento das origens do mercado capitalista no Brasil - tais como latifúndio, estrutura patriarcal e exploração indiscriminada de recursos naturais para fins de crescimento econômico externo. Mas há diferenças importantes de encaminhamento - e mesmo de estilo de dominação - quando se compara um com o outro. Apesar de sabermos, com Sergio Bagú, que em tempos coloniais a metrópole havia criado a América Ibérica "para integrá-la ao ciclo do capitalismo nascente".
Certamente que há, nesta trilogia - escravidão, latifundio e patriarcado -, base para explicar muitos dos problemas de fome crônica nas diversas regiões do Brasil, já que, desde o início, defrontamo-nos com o atrofiamento de policulturas que poderiam garantir a alimentação interna da população brasileira em função da monocultura do açúcar. Monocultura demandante de extensas terras, exclusivista e, sobretudo, voltada para o enriquecimento de várias nações, beneficiadas pelas relações econômicas desiguais (diretas ou indiretas) com o país. Nomeadamente Portugal e Inglaterra. Para entender estes processos cumulativos de deterioração econômica, basta atentar para as análises de Eduardo Galeano e Celso Furtado - este último mencionando as oportunidades de ganho que Portugal ofereceu direta ou indiretamente aos holandeses (que depois concorreriam com o Brasil a partir do mercado de açucar estabelecido nas Antilhas) e aos ingleses (que construiriam muito da sua hegemonia bancária a partir do ouro brasileiro).
De todo modo, Florestan diferencia o mercado colonial do mercado capitalista florescente. Como dirá Florestan, “o padrão de desenvolvimento neocolonial é profundamente diverso do padrão colonial de desenvolvimento” (p. 266). A diferença principal é que o mercado capitalista exigirá uma institucionalização e inserção da economia interna no circuito mundial e na interação com o mercado hegemônico externo não existente no mercado colonial - em que o Brasil funcionava como apêndice da economia européia, sem haver nenhum mecanismo de regulação do fluxo de expropriação colonial (ver p. 265). É neste ponto que a porca torce o rabo.
Embora as nações hegemônicas intentassem obviamente, em relação ao Brasil, uma posição de domínio no seu fluxo de comércio internacional e de “apropriação da maior parcela possível do excedente econômico gerado” (Fernandes), o fato é que há uma diferença entre satelização colonial e satelização pelos mecanismos de mercado. Sem, é claro, esquecermos que esta última se alimentou da posição de colônia do Brasil no primeiro caso. Conquanto se geste, a partir daí, novos mecanismos de depedência – de que dificilmente o Brasil conseguiria se livrar no futuro –, a satelização pelos mecanismos de mercado acontece em outras bases e se alicerça na idéia (assimilada pelas estruturas dominantes e dominadas) de que o mercado externo exportava, principalmente, desenvolvimento econômico capitalista (p. 264). Esta idéia vigente, a circular e obnubilar os olhos da burguesia nascente brasileira, funcionou, ao que parece, como um tipo de "boa noite, cinderela".
A partir daí, há transformações em três aspectos básicos. Florestan fala em três enlaces a considerar, que permitem medir a influência do mercado capitalista moderno na dinamização da vida econômica. O primeiro enlace diz respeito à relação entre a economia interna e os mercados mundial e externo hegemônico, de que já falamos. O segundo é o enlace do mercado capitalista à vida da cidade e à população. Como veremos, trata-se aqui não só da constituição de um mercado consumidor, como também do aparecimento de novas funções laborais ligadas a uma economia urbano-comercial nascente – exercidas por escravos de aluguel, libertos e imigrantes pobres. O terceiro enlace é o do mercado capitalista com um sistema de produção escravista. Como nos mostra Florestan, esta relação não foi, como poderíamos pensar, um entrave, para o desenvolvimento capitalista no Brasil. Ao contrário, seja por razões econômicas, seja por preservar como base valores e parâmetros de estruturação social que se mostravam favoráveis à acumulação e concentração de riquezas , caras ao modelo capitalista, o sistema de produção escrevista serviu de alimento para o mercado capitalista neocolonial. Depois, no capitalismo de competição, este sistema haverá de mostrar entraves até ser substituído.
Não precisou haver mudanças iniciais na estrutura agrária e no sistema produtivo escravocrata para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A economia urbana-comercial nascente soube se articular e mesmo se alimentar da economia agrária – esta última funcionando dentro de seus antigos parâmetros até meados do século XIX. A utilização do trabalho escravo pelos engenhos e fazendas foi mesmo combustível para a transição neocolonial e a revolução urbana. Antes financiou esta última, de modo que a produção escravista possibilitará, em certa medida, a suplantação de seu próprio modelo (voltado antes para a exportação e enriquecimento externo) em proveito de uma burguesia brasileira florescente, interessada em financiar suas atividades. Como mostra Florestan, tem início uma “articulação da economia urbano-comercial com a economia agrária” (p. 266), mas esta economia é “dotada de dinamismos próprios de desenvolvimento”, “dependentes da produção escravista; no entanto, relativamente fortes sempre que a procura externa pudesse garantir a expansão deste setor” (p. 266).
Assim, vai sendo gestada paulatinamente uma relação de dependência entre o Brasil e as economias hegemônicas. A expoliação não-regulada cede lugar a um tipo mais sutil e naturalizado de dominação, em que deixa de interessar o controle absoluto sobre os fluxos comerciais e passa a se desejar a ascendência indireta sobre os encaminhamentos financeiros e de produção do país, de modo a ajustá-los “aos dinamismos das sociedades hegemônicas” (p. 273). Do mesmo modo, valores externos vão sendo injetados nas economias de periferia. Há aqui um jogo de proder mais sutil, porém mais profundo do que o colonial. Uma vez reproduzida a estrutura, o resultado econômico podia ser, mais ou menos esperado e controlado à distância. Não se trata de refrear o desenvolvimento do Brasil, mas de ajustá-lo a partir de “similaridades estruturais e funcionais” em relação à economia hegemônica e por ela transferidas (p. 276). A produção capitalista propriamente dita, por sua vez - que se inicia no setor urbano-comercial e depois se espraia pelo setor agrário -, é fruto do novo dinamismo insuflado na economia brasileira (através da produção, da manufatura e das operações financeiras). Daí forma-se, aos poucos, uma infra-estrutura diferente para o mercado capitalista moderno.
Este mercado, por sua vez, “engendra uma formação societária nova, fundada em relações competitivas” (p. 280). Deste modo, é importante considerar que a escravidão não termina pq assim querem os ingleses, mas pq o sistema escravista já não atende à infra-estrutura nascente para o mercado capitalista moderno, com um setor nascente urbano-comercial que irá demandar uma nova posição para o homem livre. Lembrando que este setor nascente não exclui, durante um bom tempo, a produção escravista, já que ela interessava. Esta relação entre o urbano e o agrário não se desfaz, embora o sistema de produção capitalista propriamente dito chegue primeiro no setor urbano-comercial e só depois chegue ao agrário.
As mudanças não param por aí - e é por isso que Florestan Fernandes enfatiza a necessidade de identificarmos o sentido sociológico implícito nas transformações por que passou o mercado, rumo à incorpração de relações de produção efetivamente capitalistas. Mudanças estas que se processam e que são importantes a partir desta nova infra-estrutura voltada para o mercado capitalista moderno. Uma delas é o surgimento da nossa de ‘povo’, que até então não havia muito claramente. Curioso que seja o mercado a despertar esta sensação, em virtude de termos antes apenas dois estamentos claros: os senhores e os escravos. Trata-se da “irrupção do povo na cena histórica” (p. 280).
As raízes deste povo, entretanto, estão calcadas em uma configuração estética bastante específica - a de uma infra-estrutura para o mercado capitalista moderno, cuja base identitária de sustentação foi o setor urbano-comercial. De todo modo, difícil imaginar que os fundamentos da sociedade brasileira - patriarcado, escravidão e latifúndio - tenham deixado de penetrar, subterraneamente, na dimensão urbana-comercial recém-criada.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Políticas da FAO
Um artigo que vale a pena ler se chama "FAO: mais livre comércio, mais fome". O link para acesso é:
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1909/47
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1909/47
domingo, 22 de junho de 2008
Uma fome anunciada
Sempre que se fala de fome, dois argumentos voltam à superfície: o de que o problema é a quantidade de alimentos disponíveis ou de que o que falta a alguns países é uma aposta no desenvolvimento. Estas duas teses se alimentam mutuamente e não foi à toa que o capital fez o que bem entendeu à luz da premissa de crescimento econômico.
A pergunta importante pouca gente se faz: como é que a penúria alimentar se infiltra e se instala nos países? Ou, para sermos mais exatos, dando nome aos bois: como é que a crise alimentar e a fome vão sendo injetadas pelas leis de mercado na veia das economias? Já Josué de Castro nos mostrava que a fome não é produto de condições geográficas adversas, mas de um sistema sócio-econômico adoecido. Estamos diante da manifestação mais empírica de uma produção capitalista do espaço.
Para entender a fome e a pobreza temos que olhar para os padrões de propriedade e de direito de troca vigentes no espaço social; temos que ter em conta as forças que os movem. A questão é que tanto a terra quanto o capital estão de um só lado. As terras, concentradas em algumas poucas mãos, pertencem aos donos do capital. O dinheiro, por sua vez, serve pra acumular mais terra e especular com o que nela se produz. Produzir também não é o mais importante, desde que se possa obter financiamentos com a terra em questão. A vertigem dos ganhos é a palavra de ordem.
Muito se tem falado sobre as razões da fome em vários países - Haiti, Filipinas, México, Brasil, Argentina. Fala-se de biocombustíveis, de consumo ampliado em países como a China, da redução de estoques que aumentaria a especulação (com o crescimento da demanda de ração para o gado e com safras instáveis por razões ambientais), das tais colheitas incertas e do preço do petróleo. De todas estas razões, convém não perder de vista que a raiz do problema pode estar onde não se vê, como já nos advertira o geógrafo brasileiro Ariovaldo Umbelino: no modelo de livre comércio que não regula outra coisa senão as condições propícias de acumulação do capital. Comida é mercado e, como diz Ariovaldo, manda-se a quem pode pagar mais. E, conforme esta lógica se espraia na corrente sanguínea dos países, ela vai desenhando, com suas mãos de rapina, o cenário de pobreza e de dependência econômica em que as economias do sul afundam.
É preciso ir muito além da ajuda humanitária - que, por vezes, esconde e tira o foco do ponto para o qual deveria olhar atentamente a Opinião Pública. É preciso voltar ao pecado original do modelo capitalista de produção: como se fabrica a sujeição econômica de uns em relação aos outros? Como se destrói as condições de autonomia econômica e de soberania alimentar de um país?
No caso da fome no Brasil, o livre comércio se alicerça em três caixas de ressonância poderosas: 1) a comoditização dos alimentos; 2) a financeirização das estruturas de produção, conforme nos apontam os últimos estudos de Boaventura de Sousa Santos e 3) os modelos agrário e fundiário brasileiros, comprometidos até os ossos com as condições de reprodução do capital.
Desta tríade, que sustenta o modelo especulativo e de acumulação do capital no Brasil, a perspectiva de que o capital financeiro esteja agora a territorializar-se, debruçando-se sobre a cadeia produtiva de alimentos - como analisa Boaventura de Sousa Santos - desenha cenários nada promissores. Na contramão do que se deveria esperar, fome e produção de alimentos se tornaram complementares. A soberania alimentar parece distante diante dos impactos que a financeirização das estruturas produtivas promete provocar nos avanços da reforma agrária.
Se é verdade que a venda de terras para grupos econômicos estrangeiros tem se ampliado pelo interior do Brasil e 'concorre' com a formação de estoques de terras para a reforma agrária, este é só o ponto de partida do problema. A situação se torna mais aguda quando analisamos quem são os novos donos das terras e o que pretendem fazer com elas.
Por trás deste capital financeiro e internacional, estão a cana e a agricultura de irrigação - esta última, aliás, opção política e econômica que não só compromete a autonomia do semi-árido nordestino, como estraçalha as artérias da região para que por elas transite o agronegócio exportador. Pergunta-se: como fica a soberania alimentar diante da destinação de boa parte das terras brasileiras a um modelo de negócio que se alimenta da especulação financeira e cuja premissa é a garantia de solo, água e clima para a saúde econômica dos países do norte? Como é possível ignorar a correlação íntima entre a venda de terras no Brasil - muitas vezes nas mãos de fundos de pensão -, o crescimento do agronegócio exportador, a demanda mundial por etanol e a já tão enfraquecida soberania alimentar? Se são empresas estrangeiras que decidem o que plantar - usando pra isso espaço e recursos que são bens públicos -e se são elas que decidem no mercado financeiro o valor daquilo que produzem ou comercializam, que tipo de soberania alimentar pode daí resultar para um país do sul? Que espécie de novo colonialismo estamos vivemos? Que multimercantilismo se desenha diante de nós?
A situação não pára aí. Com a regularização da situação de grilagem de algumas terras públicas a partir da MP 422 e a consequente legalização de terras sem licitação até 1500 hectares, 60 milhões de terras públicas podem passar às mãos do agronegócio (http://blog.controversia.com.br/2008/04/07/a-farra-da-legalizacao-da-grilagem/). Resta saber quais são os nomes que estão por trás da compra de terras e da legalização silenciosa da grilagem. No caso da compra de terras, não há dúvidas de que existe um novo rosto em cena: o do capital financeiro. George Soros e Adeagro, Wellington Management (administradora de ativos americana) e o banco Merril Lynch, entre eles.
Esta financeirização da cana e do agronegócio têm implicações extensas. As terras improdutivas no Brasil, que chegam a 120 milhões de hectares, deveriam ter por destino a reforma agrária no País. Mas os interesses atuais do capital apontam para outra direção. Especula-se no mercado de futuros e compra-se antecipadamente os alimentos que serão produzidos, como nos adverte Boaventura de Sousa Santos. A evidência da improdutividade pode se esconder nas entrelinhas do financiamento. E o financiamento, por sua vez, pode determinar, assepticamente, quais os caminhos que a produção vai assumir.
Se antes havia tanta terra destinada à pura contemplação - numa estrutura perversa de usufruto capitalista do espaço -, agora é provável que muita gente parada volte a se mexer. Pena que os produtos encomendados não se destinem à boca dos que têm fome, mas, sim, ao gado europeu que precisa de ração barata e à vertigem progressiva das bolsas. A comida mudou de função: tornou-se ativo financeiro na ciranda ininterrupta do capital.
***
Alguns textos são muito úteis para entendermos a situação. Seguem alguns deles:
- Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome, de Boaventura de Sousa Santos
http://blog.controversia.com.br/2008/05/22/transnacionais-de-alimentos-lucram-com-aumento-da-fome/
- Sem controle, estrangeiros compram cada vez mais terras no Brasil
http://blog.controversia.com.br/2007/09/29/sem-controle-estrangeiros-compram-cada-vez-mais-terras-no-brasil/
- O território brasileiro à venda
http://www.cptpe.org.br/modules.php?name=News&file=article&sid=339
- Do mercado financeiro para as usinas
http://blog.controversia.com.br/2008/01/03/do-mercado-financeiro-para-as-usinas/
- Como fabricar uma crise global
http://blog.controversia.com.br/2008/06/20/como-fabricar-uma-crise-global/
- Fome Global
http://blog.controversia.com.br/2008/06/06/fome-global-2/
A pergunta importante pouca gente se faz: como é que a penúria alimentar se infiltra e se instala nos países? Ou, para sermos mais exatos, dando nome aos bois: como é que a crise alimentar e a fome vão sendo injetadas pelas leis de mercado na veia das economias? Já Josué de Castro nos mostrava que a fome não é produto de condições geográficas adversas, mas de um sistema sócio-econômico adoecido. Estamos diante da manifestação mais empírica de uma produção capitalista do espaço.
Para entender a fome e a pobreza temos que olhar para os padrões de propriedade e de direito de troca vigentes no espaço social; temos que ter em conta as forças que os movem. A questão é que tanto a terra quanto o capital estão de um só lado. As terras, concentradas em algumas poucas mãos, pertencem aos donos do capital. O dinheiro, por sua vez, serve pra acumular mais terra e especular com o que nela se produz. Produzir também não é o mais importante, desde que se possa obter financiamentos com a terra em questão. A vertigem dos ganhos é a palavra de ordem.
Muito se tem falado sobre as razões da fome em vários países - Haiti, Filipinas, México, Brasil, Argentina. Fala-se de biocombustíveis, de consumo ampliado em países como a China, da redução de estoques que aumentaria a especulação (com o crescimento da demanda de ração para o gado e com safras instáveis por razões ambientais), das tais colheitas incertas e do preço do petróleo. De todas estas razões, convém não perder de vista que a raiz do problema pode estar onde não se vê, como já nos advertira o geógrafo brasileiro Ariovaldo Umbelino: no modelo de livre comércio que não regula outra coisa senão as condições propícias de acumulação do capital. Comida é mercado e, como diz Ariovaldo, manda-se a quem pode pagar mais. E, conforme esta lógica se espraia na corrente sanguínea dos países, ela vai desenhando, com suas mãos de rapina, o cenário de pobreza e de dependência econômica em que as economias do sul afundam.
É preciso ir muito além da ajuda humanitária - que, por vezes, esconde e tira o foco do ponto para o qual deveria olhar atentamente a Opinião Pública. É preciso voltar ao pecado original do modelo capitalista de produção: como se fabrica a sujeição econômica de uns em relação aos outros? Como se destrói as condições de autonomia econômica e de soberania alimentar de um país?
No caso da fome no Brasil, o livre comércio se alicerça em três caixas de ressonância poderosas: 1) a comoditização dos alimentos; 2) a financeirização das estruturas de produção, conforme nos apontam os últimos estudos de Boaventura de Sousa Santos e 3) os modelos agrário e fundiário brasileiros, comprometidos até os ossos com as condições de reprodução do capital.
Desta tríade, que sustenta o modelo especulativo e de acumulação do capital no Brasil, a perspectiva de que o capital financeiro esteja agora a territorializar-se, debruçando-se sobre a cadeia produtiva de alimentos - como analisa Boaventura de Sousa Santos - desenha cenários nada promissores. Na contramão do que se deveria esperar, fome e produção de alimentos se tornaram complementares. A soberania alimentar parece distante diante dos impactos que a financeirização das estruturas produtivas promete provocar nos avanços da reforma agrária.
Se é verdade que a venda de terras para grupos econômicos estrangeiros tem se ampliado pelo interior do Brasil e 'concorre' com a formação de estoques de terras para a reforma agrária, este é só o ponto de partida do problema. A situação se torna mais aguda quando analisamos quem são os novos donos das terras e o que pretendem fazer com elas.
Por trás deste capital financeiro e internacional, estão a cana e a agricultura de irrigação - esta última, aliás, opção política e econômica que não só compromete a autonomia do semi-árido nordestino, como estraçalha as artérias da região para que por elas transite o agronegócio exportador. Pergunta-se: como fica a soberania alimentar diante da destinação de boa parte das terras brasileiras a um modelo de negócio que se alimenta da especulação financeira e cuja premissa é a garantia de solo, água e clima para a saúde econômica dos países do norte? Como é possível ignorar a correlação íntima entre a venda de terras no Brasil - muitas vezes nas mãos de fundos de pensão -, o crescimento do agronegócio exportador, a demanda mundial por etanol e a já tão enfraquecida soberania alimentar? Se são empresas estrangeiras que decidem o que plantar - usando pra isso espaço e recursos que são bens públicos -e se são elas que decidem no mercado financeiro o valor daquilo que produzem ou comercializam, que tipo de soberania alimentar pode daí resultar para um país do sul? Que espécie de novo colonialismo estamos vivemos? Que multimercantilismo se desenha diante de nós?
A situação não pára aí. Com a regularização da situação de grilagem de algumas terras públicas a partir da MP 422 e a consequente legalização de terras sem licitação até 1500 hectares, 60 milhões de terras públicas podem passar às mãos do agronegócio (http://blog.controversia.com.br/2008/04/07/a-farra-da-legalizacao-da-grilagem/). Resta saber quais são os nomes que estão por trás da compra de terras e da legalização silenciosa da grilagem. No caso da compra de terras, não há dúvidas de que existe um novo rosto em cena: o do capital financeiro. George Soros e Adeagro, Wellington Management (administradora de ativos americana) e o banco Merril Lynch, entre eles.
Esta financeirização da cana e do agronegócio têm implicações extensas. As terras improdutivas no Brasil, que chegam a 120 milhões de hectares, deveriam ter por destino a reforma agrária no País. Mas os interesses atuais do capital apontam para outra direção. Especula-se no mercado de futuros e compra-se antecipadamente os alimentos que serão produzidos, como nos adverte Boaventura de Sousa Santos. A evidência da improdutividade pode se esconder nas entrelinhas do financiamento. E o financiamento, por sua vez, pode determinar, assepticamente, quais os caminhos que a produção vai assumir.
Se antes havia tanta terra destinada à pura contemplação - numa estrutura perversa de usufruto capitalista do espaço -, agora é provável que muita gente parada volte a se mexer. Pena que os produtos encomendados não se destinem à boca dos que têm fome, mas, sim, ao gado europeu que precisa de ração barata e à vertigem progressiva das bolsas. A comida mudou de função: tornou-se ativo financeiro na ciranda ininterrupta do capital.
***
Alguns textos são muito úteis para entendermos a situação. Seguem alguns deles:
- Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome, de Boaventura de Sousa Santos
http://blog.controversia.com.br/2008/05/22/transnacionais-de-alimentos-lucram-com-aumento-da-fome/
- Sem controle, estrangeiros compram cada vez mais terras no Brasil
http://blog.controversia.com.br/2007/09/29/sem-controle-estrangeiros-compram-cada-vez-mais-terras-no-brasil/
- O território brasileiro à venda
http://www.cptpe.org.br/modules.php?name=News&file=article&sid=339
- Do mercado financeiro para as usinas
http://blog.controversia.com.br/2008/01/03/do-mercado-financeiro-para-as-usinas/
- Como fabricar uma crise global
http://blog.controversia.com.br/2008/06/20/como-fabricar-uma-crise-global/
- Fome Global
http://blog.controversia.com.br/2008/06/06/fome-global-2/
sexta-feira, 6 de junho de 2008
Das razões estruturais às de conjuntura: como chegamos aqui?
A idéia deste blog é trazer à tona algumas questões de fundo quando falamos em fome e assimetria social. Muitos são os temas correlatos se desejamos uma compreensão mais ampla do quadro complexo e ancestral da fome. É preciso pensar o modelo de produção, a forma como constitui e usa o espaço, a relação com questões de gênero e raça, as configurações do trabalho. Muitos são os corredores que ligam o labirinto da fome.
Falar de fome, no Brasil, implica desfazer um bordado complexo. Implica caminhar no terreno minado das discussões sobre petróleo e energia. Falar de história e formação econômica do país, bem como do sistema patriarcal - legado português. Lembrar do açúcar de ontem, dos escravos de hoje e do neocolonialismo. Enfim, de um sistema econômico adoecido - como já dizia Josué de Castro - que aposta na comoditização progressiva dos alimentos.
É o livre mercado que determina hoje os fluxos da produção e do consumo alimentares. Com um detalhe que faz toda a diferença: quem produz raramente é quem consome. E, assim, a soja brasileira serve de alimento para o gado europeu. O bife daí resultante não estará nas mesas brasileiras, do mesmo modo que os morangos quenianos não têm por destino as bocas negras africanas.
Haveria muitas formas de começar a contar esta história. Penso que a melhor delas seja oferecer um quadro geral. Pra começo de conversa. E ninguém melhor que Ariovaldo Umbelino pra botar os pingos nos is. A começar pelo seu livro, disponibilizado na internet e pelos artigos e entrevistas profundos e polêmicos:
-Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária.
O link está disponível em: http://gesp.guardachuva.org/pt-br/node/76
- Crise Alimentar é o resultado do livre mercado e do abandono da política agrária
http://blog.controversia.com.br/2008/05/06/crise-alimentar-e-o-resultado-do-livre-mercado-e-do-abandono-da-politica-agraria/
- Soberania alimentar requer rompimento com o agronegócio.
http://blog.controversia.com.br/2007/05/21/ariovaldo-umbelino-soberania-alimentar-requer-rompimento-com-o-agronegocio/
- Sem enfrentamento não haverá reforma agrária
http://blog.controversia.com.br/2007/05/15/ariovaldo-umbelino-sem-enfrentamento-nao-havera-reforma-agraria/
Falar de fome, no Brasil, implica desfazer um bordado complexo. Implica caminhar no terreno minado das discussões sobre petróleo e energia. Falar de história e formação econômica do país, bem como do sistema patriarcal - legado português. Lembrar do açúcar de ontem, dos escravos de hoje e do neocolonialismo. Enfim, de um sistema econômico adoecido - como já dizia Josué de Castro - que aposta na comoditização progressiva dos alimentos.
É o livre mercado que determina hoje os fluxos da produção e do consumo alimentares. Com um detalhe que faz toda a diferença: quem produz raramente é quem consome. E, assim, a soja brasileira serve de alimento para o gado europeu. O bife daí resultante não estará nas mesas brasileiras, do mesmo modo que os morangos quenianos não têm por destino as bocas negras africanas.
Haveria muitas formas de começar a contar esta história. Penso que a melhor delas seja oferecer um quadro geral. Pra começo de conversa. E ninguém melhor que Ariovaldo Umbelino pra botar os pingos nos is. A começar pelo seu livro, disponibilizado na internet e pelos artigos e entrevistas profundos e polêmicos:
-Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária.
O link está disponível em: http://gesp.guardachuva.org/pt-br/node/76
- Crise Alimentar é o resultado do livre mercado e do abandono da política agrária
http://blog.controversia.com.br/2008/05/06/crise-alimentar-e-o-resultado-do-livre-mercado-e-do-abandono-da-politica-agraria/
- Soberania alimentar requer rompimento com o agronegócio.
http://blog.controversia.com.br/2007/05/21/ariovaldo-umbelino-soberania-alimentar-requer-rompimento-com-o-agronegocio/
- Sem enfrentamento não haverá reforma agrária
http://blog.controversia.com.br/2007/05/15/ariovaldo-umbelino-sem-enfrentamento-nao-havera-reforma-agraria/
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