Camara Cascudo disse, em seu tradicional livro "História da Alimentação Brasileira", que contamos com uma Hungersbewusstsein - ou seja, com uma consciência e um estudo da fome, em contraposição a uma Küchesbewusstsein, que seria uma espécie de consciência da culinária (2004, p. 342). Josué de Castro certamente discordaria desta impressão, já que, para ele, poucos estudos existiam que dessem conta de fenômeno tão visceral e homicida como a fome. De todo modo, o que Câmara Cascudo queria dizer era que faltava à culinária uma estética; ou seja, perspectivas de análise e de valorização da sua dimensão na vida dos homens.
Mas se a história da fome revela as relações de dominação que a condicionam, a história dos alimentos proporciona, por um caminho totalmente diverso, descobertas semelhantes. Com isso queremos dizer que uma história subterrânea de poder, de disputa de forças, subjaz ao cenário aparentemente plácido dos hábitos alimentares. Câmara Cascudo propõe uma geografia dos alimentos. Pois bem, de um modo menos evidente, esta geografia narra não só as preferências e gostos, mas também os fluxos de dominação nas relações de troca. E as cicatrizes do modelo colonial que orquestrava tais trocas na formação econômica de vários países. Exemplos não faltam: a produção e comercialização da banana nos trópicos para atender a um desejo florescente de consumo na Europa e nos Estados Unidos; as mudas de café vindas da Caiena e depois plantadas no Pará para atender a um mercado múltiplo e de uso variado. Café com leite para as elites que imitavam o hábito europeu elegante de misturar leite ao chá. Café sem açúcar como tônico para os escravos (Cascudo, p. 368).
Assim, pela cultura do café e pelos seus percursos - apenas para dar um exemplo - podemos identificar um sem-número de fenômenos: a coisificação do corpo do escravo, visto como motor de produção que precisava ser azeitado; a constituição de uma elite social no Brasil, com a respectiva perda de renda e vulnerabilidade alimentar diante de preços oscilantes; a consolidação de formas alternativas de exploração econômica em substituição à escravidão, com imigrantes entregando parte de sua produção em troca do direito de permanecer e produzir na terra (Galeano, 2007, p. 128).
O café, assim como outras monoculturas exemplarmente festejadas pelo crescimento econômico a elas atrelado, nos conta a história de uma produção capitalista do espaço. Estamos falando, portanto, da divisão desigual de recursos e de uma privatização do espaço, cuja cartografia obedece aos interesses hegemônicos. Por esta razão, ele entrelaça sua presença com o fenômeno da fome em várias partes do mundo. Em El Salvador, por exemplo, implicou a importação de alimentos básicos, como feijão e milho, que poderiam ser produzidos localmente. Nos países da América Central, o café "desalentou, em sua expansão sem freios, a agricultura de alimentos destinados ao mercado interno", com estas economias sofrendo de uma "crônica excassez de arroz, feijões, trigo e carne" (Galeano, 2007, p. 140).
A dominação simbólica tem raízes profundas e se instala nos gestos mais básicos do homem - entre eles, o ato de comer. Assim, o que se come, a condição de acesso ou de escassez de certos alimentos, o sentido cultural a eles atribuído, o reforço identitário que o gosto promove a partir da seleção dos alimentos - tudo isto evidencia o consumo como marcador social, mas, sobretudo expõe históricas relações de força.
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
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