Não estou falando nenhuma novidade. Grandes intelectuais das ciências sociais já o disseram de inúmeras formas. Há uma relação intrínseca entre as grandes propriedades e a situação de penúria alimentar por que passaram muitas populações da América Latina e da América Central. Por grandes propriedades entendemos, aqui, as que surgiram como casas-grandes (na conceituação de Gilberto Freyre) e as que vieram depois - quando a escravidão já tinha sido abolida, mas dela restava um nó górdio cujas conseqüências se fariam sentir nos séculos seguintes.
Atualmente, a mídia nos faz crer - com sua ênfase no efeito econômico dos empreendimentos por ela relatados - que o agronegócio constitui um importante alicerce para o desenvolvimento do País. Toda a infraestrutura, inclusive política, a ele relacionada parece passar pelo filtro midiático como condição natural para o crescimento econômico. Em contrapartida, todas as medidas que contenham o apetite das elites fundiárias - e, com elas, o avanço do modelo agroexportador - tendem a ser assimiladas e divulgadas pelo aparato midiático sob a perspectiva do espetáculo. São usualmente enquadradas como atentado à ordem pública. No centro da discussão, a palavra-chave: propriedade. Mais precisamente, a grande propriedade.
Na contramão do fluxo e da natureza de informações destinadas à Opinião Pública, uma análise mais detalhada dos processos de produção e consumo que nortearam a América Latina no geral - e o Brasil, mais especificamente -, nos permite perceber que onde se intalou a grande propriedade com vistas aos apetites de consumo do mercado externo, também a fome e a instabilidade alimentar estiveram presentes como pano de fundo.
Não foram só os países da América Latina. Também as economias centro-americanas foram dilapidadas frente aos interesses hegemônicos - no caso específico da América Central estamos nos referindo aos países da América Central. Curiosamente, a desnutrição de populações inteiras esteve vinculada, vejam bem, ao consumo de alimentos em outros países. Assim, a banana produzida em países como Honduras, Guatemala, Equador, Colômbia, Costa Rica e Panamá destinava-se às expectativas de consumo da Europa e dos Estados Unidos. E não se pouparam esforços para rearticular o espaço das cidades - com portos e rodovias - para nelas encrustar depois o aparato de produção que garantiria o consumo norte-americano e europeu.
Do mesmo modo, o café produzido na América Central, na Colômbia e no Brasil tinham destino semelhante. Assim, culturas orientadas predominantemente ao consumo além-mar - como as do açúcar, do chocolate, do café e da banana, todas calcadas no modelo latifundiário - desalojaram em várias partes do continente americano a agricultura de alimentos, forçando uma relação de curiosa e desnecessária dependência em relação às mesmas economias a que serviam. Desta forma, como nos mostra Eduardo Galeano, o cacau brasileiro - e também aquele que vem do Equador e da África - atendeu historicamente aos apetites que a Europa tinha em relação ao chocolate. O mesmo que o Brasil depois vai importar, a preços muito maiores, de países europeus:
"Os grandes consumidores de cacau (...) estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produziam, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados profuram árvores para sob elas dormir e babanas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça" (Galeano, p. 124-125)
Mas o chocolate é apenas um entre muitos casos conhecidos. Como já nos advertira Celso Furtado, a concentração de renda - que responde pela pobreza e, por conseqüência, pela insegurança alimentar - tem relação estreita com a estrutura fundiária brasileira (2004, p. 3). A situação se agrava, sem que identifiquem as raízes históricas do problema, à medida que, dentro de uma economia capitalista de mercado, outras formas de monetarizar gêneros alimentícios se disseminam. Comida é ativo financeiro, sujeito às oscilações das cotações de Bolsa - ou seja, aos apetites dos grandes grupos financeiros internacionais.
Como vêm observando o geógrafo brasileiro Ariovaldo Umbelino e o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, as estruturas produtivas constituem o novo alvo de interesse do capital financeiro. Não mais como risco intangível, mas como uma espécie de especulação programada. É de se imaginar que esta crescente financeirização das estruturas produtivas agucem a concentração de capital nos países investidos. E que inaugurem, paralelamente, novas formas de planejamento das estratégias de marketing e propaganda calcadas em um direcionamento ainda mais personalizado do consumo. Explicando melhor: as tendências no mercado de alimentos - e as orientações para as macroestratégias de comunicação - já não virão da própria cadeia de alimentos, mas do mercado financeiro, que se responsabiliza cada vez mais pelo destino e o valor das comodities agrícolas. Como a indústria da moda, o mercado de alimentos poderá segmentar-se segundo tendências fomentadas fora dele.
O valor simbólico dos alimentos - seja nas culturas em que se originam, seja naquelas a que se destinam - permanece como suporte narrativo imprescindível para a compreensão das forças sócio-econômicas em jogo. Através da dinâmica dos alimentos - daquilo que se consome e daquilo que está ausente; daquilo que se produz e daquilo que se vende - podemos entender a disputa de forças dentro de uma dada realidade social. O mercado de alimentos é também um tecido revelador a partir do qual entendemos as vicissitudes de uma formação econômica defeituosa. Isto porque produção, distribuição e consumo de alimentos foram sempre tratados como fenômenos exclusivamente econômicos (Castro,2004, p. 13), o que confirma outra das constatações bastante conhecidas de Josué de Castro - a de que o subdesenvolvimento não é uma etapa em que se encontram alguns países, mas produto do desenvolvimento alcançado por outros. Portanto, o consumo de alimentos é terreno em que vislumbramos muitas pegadas reveladoras: traços de dominação cultural e econômica, rastros de resistência,misturas e reinvenções de sentido. O que comemos e o que não comemos conta uma história.
A comida sempre foi reveladora de um modo de vida e de uma posição ocupada na ordem econômica. Do mesmo modo, a ausência de soberania alimentar de um país comunica suas prioridades políticas e a natureza desigual e dependente de suas relações econômicas. Neste âmbito, quatro fatores revelarão a fome como tendência ou como fenômeno social manifesto: 1. o que o país produz e vende como alimento, 2. a estrutura fundiária que sustenta esta produção (e a quem ela enriquece), 3. o que importa (e em que condições) e 4. o grau de prioridade que atribui à agricultura de consumo interno. A correlação entre estes fatores influencia diretamente as condições materiais e simbólicas da vida social. E, como tal, os níveis de nutrição e desnutrição de grupos, bem como os hábitos alimentares - quais alimentos são possíveis e marcam as identidades cultural e de classe, quais estarão ausentes por uma política agrária que privilegia a terra para outros cultivos, quais estarão acessíveis apenas para certas camadas da população em função das oscilações dos preços e da sua disponibilidade restrita.
A fome acontece por variadas razões - de calamidades ambientais e guerras a opções econômicas internacionais que restringem o consumo de comida em várias partes do mundo. O que verificamos é que muitas das situações de fome são fomentadas por relações históricas de expoliação e por relações econômicas abusivas que as perpetuam (como foi o caso do Brasil com o açúcar que destinou aos cofres de Portugal ou ainda, mais recentemente, do café e da banana na Colômbia). A situação se agudiza nestes países com relações históricas de dominação e de predomínio de uma cultura patriarcal e de latifúndio à medida que o cenário se modifica ao sabor dos apetites de um capital financeiro sem nacionalidade definida. Os localismos globais e os globalismos locais fazem parecer comuns interesses que não o são e obnubilam a visão dos fluxos e atores econômicos dominantes - antes mais claros; estabelecem uma escala ilusória universal a partir da qual as economias se medem umas às outras.
Os interesses econômicos nestas regiões onde a fome é um dado constante não se alteram com o quadro. A guerra civil e a fome desarticuladora na República do Congo, por exemplo, não reduzem os rendimentos das grandes companhias controladoras da mineração de coltan - tão necessário para o desenvolvimento e a manutenção de toda a tecnologia sob a qual repousa o Ocidente. Do mesmo modo, a fome endêmica de várias regiões do Nordeste do Brasil não altera o panorama de ganhos que a fruticultura de exportação obtém, usando terra e água que poderiam estar sendo destinados à agricultura de alimentos para consumo local.
Mas a crise alimentar atual nos mostra que o oposto não é verdade. Ou seja, as prioridades internacionais, o modelo de desenvolvimento acionado pelo Banco Mundial e propagado pelas economias, o 'loteamento' das terras agricultáveis e dos recursos do mundo conforme interesses privados, tudo isso afeta consideravelmente as condições mínimas de nutrição de populações inteiras. A opção política por uma agricultura de exportação têm pesos diferentes para os países - especialmente quando uma boa parte da renda das pessoas fica por conta dos alimentos. O milho, por exemplo, representa quase 50% dos gastos de uma família pobre no México (dados do MST). O arroz, podendo até duplicar de valor no período curto de uma semana, como aconteceu no Haiti em início de 2008 (Chossudovsky, 2008), compromete de modo inquestionável as condições de uma população local que gasta até 80% de seus rendimentos com comida. É interessante observar, conforme nos alerta Chossudovsky, que "o comércio especulativo sobre o trigo, o arroz ou o milho pode fazer-se na ausência de transações reais de bens. As instituições que especulam no mercado dos cereais não têm que estar obrigatoriamente envolvidas na venda ou na entrega dos cereais" (p.3).
Esta especulação deixa, aos poucos, de ser imaterial. Recai sobre as várias etapas da cadeia alimentar e se estende, sorrateira e firmemente, em direção às estruturas produtivas e à terra. Comida vira moeda. E quem ganha com ela não parece minimamente interessado em reduzir seus ganhos. Ainda que, em várias partes do mundo, o que sobre das rendas das pessoas seja agora insuficiente para cobrir os gastos mínimos com comida.
segunda-feira, 8 de setembro de 2008
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